segunda-feira, julho 28, 2008

Alma de rua

...debruçou em seus pensamentos votos de quem não crê mais no que já era uma dúvida e perturbava sua estabilidade emocional. Antes do falar qualquer coisa agora pensava no que queria para si, e travava luta a cada frase dita errada, e o que pensava então não mais vinha no falar, e o melhor sempre era calar-se.

Despediu-se como quem não sabe por que não disse adeus – permitiu-se um ¨até logo¨, entretanto temia como a morte os momentos do próximo encontro. Em sua rotina de causalidade mórbida e reincidências coincidentes tudo agora é motivado, sombrio e inacreditável.
Andava agora pelas ruas que jamais pensou voltar,e a cada passo novos sonhos tornavam-se mentiras, e a cada memória revivida dos carinhos sofridos novos planos de não fazer planos aportavam seu pobre intelecto vaidoso.

¨De agora em diante só serei o que sou para mim mesmo¨, pensava porquanto atravessava os olhos da gente normal, da gente que ama e odeia como quem sente nada. O pensar que conhece os outros mais uma vez acompanha a errante personagem que sempre sai às ruas deixando-o sempre aprisionado no que era quando se via abraçado pela solidão.

Nesse momento já havia parado, pensou - não teria hoje que cumprir horários- , poderia desfigurar sua rotina sem sentido. Riu de sua ilusão isolada, e aquela sensação de erro não mais doía como outrora. Ouvia o som, o timbre que um violão exalava quase ali a sua frente, e só então sentiu que via a felicidade mesmo de olhos fechados, sem esforço. Brilhou-lhe a mente por um segundo. Achou que ela talvez devesse chegar um pouco atrasada, continuou seu copo, apenas pensando em como pode o mundo ser assim, tão mundano. Viu que o nove era a casa do ponteiro dourado do relógio, seu cigarro à metade. Ousou agradecer em pensamento a atmosfera que aos poucos ali tragava.

Tinha claro o seu propósito - mudar seu rumo por motivo algum - quando viu desentendimento que partiria-lhe o coração acompanhar de um amigo, todavia sequer seu semblante alterou. Porquanto ouvia agressões, acenava para que o garçom trouxesse mais um daqueles copos preenchidos por momentos de reorganização mental. Uma espécie de paz tomou suas mãos que se abaixaram num movimento contínuo, ao seu redor pessoas confusas não mais o perturbavam. Aprisionado em sua áurea deteve-se até que não mais pôde suportar, ergueu-se num sobressalto, e saiu como um vento pela porta. Logo se pôs a caminhar sem conhecer sentido para a volta.

Contudo, algo havia sido deixado para trás que, desesquecido em sua volátil significância, agora passa a perturbar-lhe a alma tornando o espírito de alva brancura de outrora um pútrido corpo de lodosa existência. Era sim, era a sua única chance que ali abandonara. Aqueles acordes já estavam distantes quando se deu conta, havia se esquecido no meio daquela confusão.

¨Ó carne minha! Desgastada e fiel! Não desespera que volto ligeiro pra ti!¨

Já estava começando a gostar daquilo, era estranho, e o pitoresco recorrentemente o fascinava. A promessa que fizera há pouco ao seu corpo parecia desgastar-se com o tempo que, para ele, fez-se absoluto. Por um curioso e amplo espectro agora podia observar tudo que havia feito durante sua obviedade temporo-espacial, sua vida de tanto dormir e tanto acordar.

Refletiu...

Seria mesmo o sono uma morte interina? Como um pacto eterno com a inorganicidade, a vida floresce rítmica, e seu compasso é tão lívido quanto lento. E se quisermos viver desligados? E se eu quiser só olhar agora?

Austero, de imponência quase amedrontadora, aquele espírito enfastiado pela instância reflexiva estendeu suas meditações até os mais elevados pensamentos. Até que um espasmo metamórfico o atingiu fazendo-o bruxulear de existências convergentes e indescritíveis. Enquanto isso, esbaforidos, alguns pegavam a carcaça rejeitada e corriam à procura de homens que reavivassem aquele entulho humano e mórbido.

Já estava decidido, não voltaria, não havia por que.

¨Aquilo estava em frangalhos!¨, desdenhou.

Uma vez livre daquela resolução física, fez-se abstração pura e viu tão logo que sentia-se leve, caminhava, em pirraça fanfarrona, o chão não podia sentir, nem mais nada, e aquele branco sensual o pôs bestificado.

¨Espírito é não-corpo!¨ , exclamou.

Costumava gritar para si aquilo que lhe custava a entrar na cabeça, e mesmo ignorante da verdade, punha-se elegante na mais fina postura de um sujeito honestamente sábio. Impressionava agora ver de fora toda aquela ganância, toda a fartura com a qual o homem congestiona o próprio ser.

Negou tal gesto de mesquinhez, e contemplou – pícaro e quixotesco – o alvorecer de sua verdadeira empreitada existencial. Existencial? Será mesmo? Mas que será de suas escolhas, se não mais tens aqueles vigorosos guias hormonais? Decisões? Para quê, se o que tens são proto-sentimentos?

Agora salta aos olhos o que o cosmos oculta em sua materialidade maquinal realista. A essência, o insumo das verdades existenciais, o pensado e não-dito, o desejo que, oculto, emana oblíquo, o humano ainda não lapidado, antes sobejo da concretude, agora ente que resplandece as dimensões em sua desordem caótica.

Sim, vilipendiando o mundo dos vivos como um desordeiro, um pregador de peças em necrose arrebatado, ele sim se fez palhaço, das perdidas ilusões, de um circo sem futuro...

Um comentário:

flor disse...

"Tinha claro o seu propósito - mudar seu rumo por motivo algum - quando viu desentendimento que partiria-lhe o coração acompanhar de um amigo, todavia sequer seu semblante alterou."
Hey, cá estou e já está lá...
Mew, esse trecho foi tudo ;] 'dorei'
Beijos